28 de março de 2024Informação, independência e credibilidade
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Caso de médica espancada no RJ é triste indicativo dos lados que serão tomados na “ruptura”

Grupo com ao menos um sargento quase matou uma médica, enquanto bombeiros testemunhavam e omitiam socorro

Há muito não vem sendo fácil o trabalho de noticiar. Difícil escapar do clichê, mas 2020 está cruel: após a crescente de ódio e intolerância política nos últimos anos, toda a situação não só no Brasil, mas no mundo todo, evoluiu para uma forma difícil de conceber.

Ameaça de guerra mundial, incêndios florestas e finalmente uma violenta pandemia e recessão econômica. “Finalmente” nada, pois este momento de inquietude e insegurança propiciou para piorar ainda mais com insegurança democrática, evidências do fascismo e uma escalada da interminável guerra racial.

E pegando um pouco de tudo o que passamos, em particular no Brasil, (mais) um caso no Rio de Janeiro foi não só de embrulhar o estômago, mas de causar revolta, indignação, tristeza e medo.

Brutalmente espancada

Uma médica, Ticyana Azambuja, de 35 anos, foi reclamar de uma “corona fest”, uma festa clandestina realizada durante a pandemia. Incomodada com a aglomeração e o barulho, bateu na porta e pediu silêncio. Não a atenderam.

Revoltada, ela quebrou o retrovisor e o vidro traseiro de um carro estacionado irregularmente em frente à calçada. E por causa desse “crime hediondo”, ela foi condenada a morte por cinco frequentadores da festa. Um deles confirmado como sargento Luiz Eduardo dos Santos Salgueiro, que atua no Batalhão de Choque, dono do carro depredado pela médica.

Não, ela não morreu. Mas faltou pouco.

“Eles vieram pra me matar. Saí correndo. Um deles gritou: ‘Não adianta correr, porque nós vamos te matar’. Eles me pegaram, me enforcaram e me jogaram no chão, como se eu fosse um saco de batatas. Eu desmaiei. Quando acordei, estava com uma bota em cima do meu tórax. Não conseguia respirar”. Ticyana Azambuja, médica agredida no Rio.

Ela prestou depoimento na 20ª DP (Vila Isabel), nesta segunda, e contou os momentos de pânico enquanto era agredida em frente ao apartamento onde mora. Seu joelho fraturou quando foi jogada no chão e disse que ouviu os agressores combinando entre eles como fariam para se desfazer do corpo, após matá-la:

“Um deles falou: ‘Abre o carro porque a gente vai dar um sumiço no corpo dela’. Naquela hora, eu sabia que ia morrer. Eu comecei a gritar desesperadamente, para que alguém impedisse aquilo. O que mais me doeu foi ver que muitos olharam e passaram adiante.” Ticyana Azambuja.

Dentre os que viraram os olhos, estavam os bombeiros de uma unidade que atuava ao lado do local da festa clandestina. Segundo Ticyana, eles viram tudo. E não fizeram nada. Não foi nem o caso de se omitir: ela pediu por socorro, pediu para entrar na unidade para se proteger. Foi “tratada como bandida”.

“Os bombeiros viram toda a ação e não fizeram absolutamente nada. Eu pedi ajuda, eu pedi pra entrar no quartel para que eles pelo menos garantissem a minha integridade física. Eles falaram que eu era bandida e merecia morrer”. Ticyana Azambuja.

E isso não aconteceu só com os agentes de segurança: até mesmo entre os civis da vizinhança, o desejo era mesmo que a médica morresse. De acordo com Ticyana até “senhorinhas” disseram que era para ela morrer mesmo:

“Eu pedia para que chamassem a polícia e alguém me ajudasse, por favor. Para que filmassem com um celular o que estava acontecendo, uma ajuda pelo amor de Deus. Mas ninguém veio. Algumas senhorinhas passaram pela cena e falaram para me matar mesmo. Quebraram meu joelho esquerdo e pisotearam minhas duas mãos”. Ticyana Azambuja.

Um vizinho samaritano interveio e tentou defendê-la. Mas, infelizmente, acabou sendo agredido. Ele foi chamado de ‘defensor de bandido’ e levou um soco na boca. Por sorte, quando as viaturas chegaram, os cinco covardes foram embora.

Ódio e violência

Todo o caso ilustra um pouco do pior dos mundos. A começar pela “corona fest”, uma aglomeração em um momento de pandemia. Que tentou ser interrompida por uma médica que, provavelmente, está trabalhando mais do que qualquer dos festeiros neste período.

A situação piora por ter um sargento no local. Não é o caso de julgar toda uma corporação por causa de uma maçã podre, mas deve ser claro e evidente que, em todas as classes sociais, em todas as atividades, essenciais ou não, e principalmente as de segurança, há quem releve, negue ou sabote a necessidade de se preservar nesse período de pandemia.

Daí, só piora: a médica não acertou em depredar o carro. Mas tudo foi muito pior na reação contra ela. Vivemos hoje um período de turbas, de pessoas que se reúnem numa multidão sem rosto para espancar um suspeito de crime. A população se vê no direito de agir como juri, juiz e executor. E entre outros, a pena capital é evitada mundialmente exatamente por a justiça não ser perfeita e existir falhas.

Os agressores, os bombeiros, as velhinhas, todos com o mesmo pensamento: “é bandido, deve morrer”. Quem diabos deve morrer por ter quebrado um retrovisor? Quem aqui deve sair na rua para fazer justiça com as próprias mãos? E por que justamente quem faz isso é exatamente aqueles que se dizem “tementes” a Deus ou se vangloriam por serem “cidadão de bem” ou “pai de família”?

O pior de tudo é que, infelizmente, além de ter sido agredida, as maiores consequências vão acontecer com Ticyana. Bombeiros omissos, agressores… Praticamente nada acontecerá com eles. E a médica muito provavelmente será ameaçada pelos amigos dos meliantes.

Insegura e desprezo pela justiça brasileira que, tomada por todos os lados, acabou fazendo com que a população corresse e, de maneira errada e criminosa perseguisse a busca pela justiça com as próprias mãos. Mas não se limita apanas à população civil ou, vá lá, militares.

Ruptura

O momento democrático é péssimo. O presidente do Executivo está em plena guerra contra os agentes do Legislativo e Judiciário. Há muita mentira, muitas acusações de fascismo e nazismo. Ameaças de Impeachment ou golpe militar. Aliás, nem se chama mais “golpe”, já que foi apelidado agora de “ruptura”.

Ruptura essa que, diante de tudo o que notamos nos últimos meses, pode mesmo estar prestes a acontecer. As peças vão se encaixando no tabuleiros, os movimentos vão sendo feitos e enquanto alguns privilegiados no reinado, na igreja ou nas torres do castelo alto estão relativamente protegidos, os peões são usados no primeiro fronte de batalha. E são os primeiros a cair.

O detalhe é que enquanto num jogo de xadrez não existe vantagem numérica, na vida real a coisa pode mudar de lugar. Ao invés de duas torres, dois bispos e dois cavalos para cada lado, um pode acabar acumulando todo. E no cenário de ruptura do Brasil, pouca coisa é mais preocupante do que tentar imaginar onde ficará a cavalaria. Em igual número ou pendendo mais para um lado.

O Executivo marcha ao lado de seus generais e tem seus peões ampliando sem discurso em alto e bom tom. O legislativo acredita que os “generais de pijama” não são representantes das regras do jogo. Algo até corajoso de admitir. Ainda mais se levarmos em conta que acabamos de relatar um inocente peão, da infantaria médica, que fora atacado por cinco cavalos.

Nós sabemos de que lado estes estão estes cinco e para qual lado vão correr quando for a hora da cavalaria chegar. Resta saber para qual lado os demais vão correr. Se haverá um racha significativo ou um massacre retumbante em número em favor de um dos lados.

Infelizmente, essa história jogo parece não estar destinado a um final feliz. E caminha para que só vai terminar quando um rei estiver acuado e sem ter como se movimentar num mate. A menos que desista, e seja convencido a se derrubar. Ou que seja derrubado.

One Comment

  • Avatar Marketing Digital

    “A população se vê no direito de agir como juri, juiz e executor”

    O STF também.

    A culpa é do presidente? E o que ocorria antes? Não tem maior peso?

    Piadistas

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