4 de maio de 2024Informação, independência e credibilidade
Brasil

Cotada para substituir Pazuello, médica teria ainda que mudar absurdos de Bolsonaro na Saúde

Cardiologista Ludhmila Abrahão Hajjar é defensora da ciência, a favor de recomendações da OMS e contra tratamento precoce pra Covid-19

A cardiologista Ludhmila Abrahão Hajjar, cotada para substituir o general Eduardo Pazuello no comando do Ministério da Saúde, avalia que “o Brasil está fazendo tudo errado” na pandemia. “O que realmente faltou foi ciência, combater o negacionismo, união das classes”, disse ela em entrevista concedida há uma semana.

O receituário de Ludhmila para o combate ao coronavírus vai na contramão do que defende Jair Bolsonaro, com quem a médica se reuniu neste domingo. Critica a cloroquina e defende o isolamento social, por exemplo.

A indicação da médica perdeu força no mesmo dia em que foi recebida pelo presidente no Palácio da Alvorada. Chegaram a Bolsonaro informações que circulam nas redes sociais sobre declarações da médica nos últimos anos, incluindo um áudio atribuído a Hajjar em que o presidente é chamado de “psicopata”.

No áudio, recebido por Bolsonaro após se encontrar com a cardiologista no Planalto, a interlocutora defende a eleição do governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM), para presidente, chamando-o de “corajoso”. No início da pandemia da Covid-19, Caiado determinou medidas de restrição de circulação e confrontou Bolsonaro por declarações em que o presidente minimizava o impacto do vírus.

Nas redes sociais, seguidores do presidente reagiram com críticas à possibilidade de nomeação de Ludhmilla, citando um vídeo em que a médica aparece numa conversa com a ex-presidente Dilma Rousseff.

A cardiologista também é criticada pela militância bolsonarista por defender posicionamentos que são consenso na comunidade científica, como a inexistência de um “tratamento precoce” eficaz contra a Covid-19, além da adoção de medidas de isolamento social.

Veja abaixo um extrato do pensamento da doutora em entrevista ao jornal Opção:

Colapso hospitalar: “O que estamos assistindo agora é realmente uma onda de aceleração no número de casos e do número de mortes com, mais uma vez, o colapso do sistema de saúde. Ao mesmo tempo que avançou a terapia e avançou o diagnóstico, melhorou o rastreio dos casos, a desaceleração e a incongruência nas medidas sanitárias foram, infelizmente, responsáveis pelo o que estamos vivendo hoje.”

Escassez de vacinas: “Não tivemos uma política de adoção das vacinas que pudesse ter atendido a população de uma maneira geral. Hoje temos um número muito pequeno da população vacinada. Isso tudo tem um resultado hoje catastrófico, que estamos, infelizmente, assistindo no nosso dia a dia. (…) O Brasil deveria estar hoje com cinco ou seis vacinas disponíveis. E o Brasil não fez isso. Mas ainda dá tempo de fazer. E é o que temos cobrado incessantemente.”

Medidas restritivas: “É óbvio que o isolamento social tem de ser preservado, todas as pessoas têm de estar aderentes. Agora, se é lockdown ou toque de recolher depende do Estado. Depende do Estado e depende do município. Mas isolamento social tem de ser para todos. O problema é que as pessoas perderam o crédito na classe política, perderam o crédito em muitos órgãos de imprensa, cada um falando uma coisa.”

Lockdown nacional: “Não concordo com a medida. Discordo completamente. O Brasil é um país continental que tem 27 Estados. Cada Estado tem a sua epidemiologia local, a sua realidade, o seu número de leitos. A questão de fazer lockdown e toque de recolher tem de ser tratado Estado por Estado, semana a semana, pelos técnicos e cientistas locais. Não acredito que deve haver uma medida nacional única que sirva para todo o Brasil. Tem de ser tratado individualmente.”

União Nacional: “É lamentável ver governador brigar com o presidente, presidente brigar com governador. Toda esta energia tinha de ser usada no combate à pandemia. Este é o problema. Isto não está sendo feito. No que o povo vai acreditar? Na propaganda da televisão, no que o presidente fala, no que o Ministério da Saúde orienta ou no que o governador fala? O discurso tem de ser um só.”

Kit Cloroquina: “Imagine se só o Brasil teria a cura dessa doença! Só os instagrammers, tuiteiros e os youtubers brasileiros saberiam como tratar a fase precoce. Isso é uma vergonha internacionalmente discutida. Sabemos que cloroquina não funciona há muitos meses, que azitromicina não funciona há muitos meses, que ivermectina não funciona há muitos meses. Mas ainda tem esses kits por aí. Tem conselhos que defendem. Tem conselhos que não negam. É uma conjunção de fatores – o não conhecimento e a não adoção de práticas baseadas em evidências científicas – que só coloca a vida das pessoas em risco.”

Máscara e pesquisa alemã citada por Bolsonaro: “A pesquisa científica da Alemanha citada é uma vergonha. É um questionário. Não teria nem que ser discutido. Quem faz isso refuta tudo que há de ciência. A máscara e a vacina são as duas melhores maneiras de se prevenir. É mais um fruto da falta de conhecimento, que é o que estamos – de uma maneira lamentável – vivendo.”

É possível reverter os erros? “Não digo reverter, mas minimizar a gravidade, reduzir o tamanho da perda. Tem de haver uma transformação da sociedade como um todo. A pessoa, o paciente, o cidadão tem de ter um engajamento na sua vida, sobre a sua saúde. Isso é fato. A começar da responsabilidade de cada um. Segundo, tem de haver uma mudança de comportamento básico da classe política de uma maneira geral. É momento de união. Eu, como médica, estou na linha de frente desde o início da pandemia no Brasil. Fico extremamente triste quando vejo que, ao invés de estarem unidos, nossos líderes estão discutindo para ver quem deu e quem não deu recurso. Não tem cabimento! Agora é hora de olhar para as pessoas, para os pacientes, para os hospitais e para o sistema de saúde. Para o sistema de transporte, para as medidas protetivas, para a aquisição de vacinas. Tem de haver um choque nessa história. Parece que as pessoas estão adormecidas.”