3 de maio de 2024Informação, independência e credibilidade
Artigo

O pênalti do dr. Jota – A crônica do Pife

O Jota era o tipo dos livros, devorador de páginas e não queria seu pupilo ao avesso das letras.

Osvaldo Epifânio (Pife)*

Jota, o dono da bola, bate o pênalti

Era franzino e delgado ao compasso das canelas eretas e tinha uma mente parelha ao Cachimbal, seu sobrinho, de inteligência ímpar. Os dois, às vezes, em um ou outro surto de genialidade, chegavam aos ristes dos dedos: “me respeita”.
O Jota era o tipo dos livros, devorador de páginas e não queria seu pupilo ao avesso das letras. Mas se amavam. O Zezinho Cachimbal, maior lateral direita de todos os tempos do Bueirinha Futebol Clube, nunca aceitou o mal-humor do tio, embora o caneludo fosse seu ídolo. Mas vamos à história.

Aos olhos e nas escalações do lendário Seu Plácido, o Jota sempre esquentava o canto no banco de reservas, já que não tinha vocação para ser atleta, nem para ser atlético. Não tinha. O magro era desengonçado e não se livrava das achincalhadas vozes dos seus pares, como um perna-de-pau incorrigível.

No entanto, não se abatia, nem desistia de sua certeza íntima de grande jogador. Era teimoso. Levava sempre debaixo dos sovacos a bola do jogo, como um trofeu pintado de orgulho. E ai daquele que tivesse a ousadia de não escalar o nome “J” nas partidas. Apenas o velho treinador tinha essa coragem, nem sempre vencedora.

Até que!

Caía uma chuva fininha e melancólicoa na hora do pênalti. Silêncio. O Jota, dono da bola coraça, balançava os olhos entre o Guerréu e o Careca, sem entender por que estava sendo escanteado para bater o pênalti. “Eu sou o dono da porra da bola, e comprei a redondinha no armarinho do Pintombeira com o dinheiro de umas aulas que dei ao Coquinha e ao Carlos Carmecita no salão paroquial da igreja”, pensou em segundos. “E esses caras não querem que eu cobre o pênalti? Tá aqui!”
“Guerréu, saia. Ei, Careca, saia”.

O canto da boca do Jota já fazia uma curva para cima da bochecha esquerda, num chiste estrondoso peculiar. Ora, quem se atreveria a impedi-lo!

Não me lembro do nome do goleiro. Era um gordinho que trabalhava como eletricista na fábrica. Soube, depois de muito tempo, que tinha deixado Fernão-Velho e não voltara mais para a Rua do Pescoço, onde nascera.
O Jota arrumou a bola de sua propriedade com a dedicação de um monge, fez um gesto de autoridade com os ombros magros, deu uma fungada no nariz aquilino e se concentrou, como o Pelé no seu milésimo gol no Andrada do Vasco. Puxou o calção para cima do umbigo e se certificou se o Guerréu não estava fazendo figa, ou dando dedo e deu dois passos longos de ganço para trás. Era a primeira vez que bateria um pênalti. Dizem que fizera um gol há uns dois anos num racha na beira da lagoa, na Rua da Praia. Sobre tal feito, o Cachimbal jurava que ele tinha usado a mão nesse único gol de sua, digamos, carreira de jogador.

Partiu com a força da raiva de ter sido preterido em pensamento pelos seus colegas. Parecia ter a certeza da glória, antes mesmo do chute, pois seu calcanhar era uma espécie de leme que não o deixava torto, mesmo a passos longos.

Deu um tiro de arrebentar a coraça. E…

Seus cabelos já grisalhos, dando sombra a um sorriso solidário, se apresentaram a uma conterrânea no Hospital Universitário. Ela tinha pedido ajuda ao Jota, doutor e professor da universidade, para fazer uma cirurgia. O coração fernão-velhense do magro não se ausentaria da alegria dos bons em acolher a mãe de um amigo dos tempos idos daquela encosta da Mundaú. “Jamais deixarei Fernão-Velho desamparado”, era um mantra do eterno rapaz de canelas secas.

O filho da velha tinha testemunhado aquele pênalti. Como sua mãe estava numa sala de espera, ele se aproximou do doutor e disse: “foi incrível aquele teu pênalti. Só não etendi uma coisa: por que você levou a bola pra casa depois do chute?”
O dr. Jota misturou o riso com a memória infeliz. Tinha perdido o pênalti.

*Osvaldo Epifanio (Pife) é professor e cronista, desde Fernão Velho.