26 de junho de 2024Informação, independência e credibilidade
Brasil

Preso, Lula quer “desmascarar” Moro e diz que perseguição matou esposa

“Eu vou trabalhar muito para provar a minha inocência e a farsa que foi montada”

Lula concedeu, na PF, sua primeira entrevista desde que foi preso. Foto: Marlene Bergamo

O ex-presidente Lula concedeu uma entrevista exclusiva à Folha e ao jornal El País, por pouco mais de duas horas. Tudo aconteceu em sala preparada pela Polícia Federal na sede do órgão em Curitiba, onde está preso desde abril do ano passado.

Os assuntos foram diversos e neste trecho ele pergunta por Queiroz, o funcionário laranja com laços milicianos de Bolsonaro, sua obsessão em querer desmascarar o ex-juiz Sergio Moro e como uma política de ódio virulento e perseguição ajudou a matar sua esposa.

Foi preciso uma batalha judicial para a entrevista acontecer, que chegou a ser censurada pelo STF (Supremo Tribunal Federal), em decisão revista na semana passada pelo presidente da corte, Dias Toffoli e a primeira parte pode ser conferida clicando aqui.

Acompanhe trechos

Queiroz

“Eu tenho desafiado os empresários a dizerem quem é que me deu cinco centavos. A coisa é que mais acontece no Brasil é denúncia. E sou favorável que todas as denúncias feitas sejam apuradas. Investiga, investiga, apura, apura, faz o que quiser. Eu estou achando estranho essa tal dessa milícia do Bolsonaro. Cadê aquele cidadão dos R$ 7 milhões (o laranja Fabrício Queiroz, ligado a Flavio Bolsonaro)? Cadê a imprensa que não está atrás do Queiroz? Então, é o seguinte, o Brasil tem dois pesos e duas medidas. Eu, ex-presidente da República, sem nenhuma prova, foram na minha casa, recebi vários policiais. O seu Queiroz não atendeu a nenhum pedido (para depor no Ministério Público) e a Polícia Federal não foi buscar ele ainda. Os policiais do Exército dão 80 tiros num carro, matam um negro. E vai a imprensa perguntar para o ministro da Justiça e ele fala: “Isso pode acontecer”. É por isso que eu não tenho o direito de baixar a cabeça, de ficar esmorecido, fraquejar. Eu estou mais tinhoso que nunca.

Petista foi colocado em uma mesa a uma distância de 4 metros de todos. Ninguém poderia se aproximar

Eleição 2018

“Uma das condições que fez com que eu viesse para cá era porque não havia nenhum advogado naquele instante que não garantisse que eu disputaria as eleições sub-judice. Mesmo condenado, eu poderia concorrer. A política está efetivamente demonizada. E vai se levar um tempo muito grande para a gente tratar a política com mais seriedade. E eu estava com um orgulho muito grande de ganhar as eleições de dentro da cadeia. É importante lembrar que eu cresci 16 pontos aqui dentro da prisão. Sem poder falar. Nós tivemos uma eleição atípica no Brasil. O papel do fake news na campanha, a quantidade de mentira, foi uma coisa maluca. E depois teve a falta de sensibilidade dos setores de esquerda de não se unirem.

Corrupção

Ela pode ter havido. Agora, que se faça prova. Teve corrupção, a polícia investiga, faz acusação, prova, está condenado. Fomos nós do PT que criamos os melhores mecanismos para apurar a corrupção. Não foi o Moro, não foi ninguém. Combater a corrupção é uma marca do PT. Se alguém do PT cometeu um erro, tem que pagar. A única coisa que queremos é que se apure, que se investigue. Eu falo por mim. Eu desafio Moro, Dallagnol, 209 milhões de pessoas –inclusive você– a provar a minha culpa. Eu disse que está provado que eu fiquei sabendo daquele maldito sítio dia 15 de janeiro de 2011. E o sítio tinha dono, dono, pré-dono, e bidono. O Jacó Bittar era meu amigo de 40 anos, comprou o sítio no nome do filho dele, com cheque dado pela Caixa Econômica Federal, e a polícia sabe disso, a polícia investigou. Nós tivemos policiais e procuradores visitando casa de trabalhador rural [do sítio], casa de pedreiro, casa do caseiro, perguntando até para as galinhas: “Você conhece o Lula? O Lula é o dono?” Nem as galinhas falaram. Porque se eu quisesse eu podia comprar. Então, se eu cometi o erro de ir num sítio em que alguém pediu e a Odebrecht reformou, vamos discutir a questão ética. Aí é outra questão.

Foto: Marlene Bergamo

Desgoverno

Qual é o meu incômodo? Se eu tivesse aqui preso e o salário mínimo tivesse dobrado, pensaria “o Lula realmente é um desgraçado, prendeu e melhorou a vida do povo”. Mas não. Acabaram agora com o aumento real do salário mínimo. Inventaram uma carteira de trabalho verde e amarela com menos direitos, para quem estiver entrando no mercado de trabalho. Nenhum empresário vai contratar um trabalhador que não esteja com carteira verde e amarela. Essa gente pensa que o povo é imbecil para ficar mentido o tempo inteiro para o povo. Quando falam em autocrítica, eu acho que nós devemos ter muitos erros. Eu, por exemplo, tive um erro grave. Eu poderia ter feito a regulamentação dos meios de comunicação. É uma autocrítica que eu faço. Mas imagina se todo mundo nesse Brasil fizesse uma autocrítica. A elite brasileira deveria estar agora fazendo autocrítica: “Poxa vida, como a gente ganhou tanto dinheiro no governo do Lula, como é que o povo pobre vivia tão bem, como é que o povo pobre estava viajando para o Piauí, para Sergipe, para Guaranhus, de avião e agora nem de ônibus pode viajar?”.

Americanos

Nunca vi um presidente bater continência para a bandeira americana Eu nunca vi um presidente ficar dizendo ‘eu amo os EUA, eu amo’. Ama a sua mãe, ama o seu país! Que ama os Estados Unidos! Alguém acha que os Estados Unidos vão favorecer o Brasil? Americano pensa em americano em primeiro lugar, pensa em americano em segundo lugar, pensa em americano em terceiro lugar, pensa em americano em quinto e se sobrar tempo pensa em americano. E ficam os lacaios brasileiros achando que os americanos vão fazer alguma coisa por nós. Quem tem que fazer por nós somos nós. A solução dos problemas do Brasil está dentro do Brasil.

Moro e Lava Jato

Durante todo o processo, eu sempre tive certeza, pelos discursos da Lava Jato, de que a operação tinha um objetivo central, que era chegar em mim. A imprensa retratava: prenderam fulano. Vai chegar no Lula. Prenderam fulano. Vai chegar no Lula. E muita gente que era presa, a primeira pergunta que faziam para a pessoa era: “Você é amigo do Lula? Você conhece o Lula?”. Tinha companheiros no PT que não gostava quando eu dizia isso. “Eles vão chegar em mim e depois vão caminhar para criminalizar o PT.” Muita gente achava que eu deveria sair do Brasil, ir para uma embaixada, que eu deveria fugir. E eu tomei como decisão que o meu lugar é aqui no Brasil.

Eu tenho tanta obsessão de desmascarar o Moro, de desmascarar o procurador Deltan Dallagnol e a sua turma, e desmascarar aqueles que me condenaram, que eu ficarei preso cem anos, mas eu não trocarei a minha dignidade pela minha liberdade. Eu quero provar a farsa montada. Montada aqui dentro, montada no Departamento de Justiça dos EUA, com depoimento de procuradores, com filme gravado, e agora mais agravado com a criação da fundação Criança Esperança do Dallagnol, pegando R$ 2,5 bilhões da Petrobras para criar uma fundação para ele.

Eu tenho uma obsessão. Você sabe que eu não tenho ódio, não guardo mágoa porque, na minha idade, quando a gente fica com ódio a gente morre antes. Então como eu quero viver até os 120 anos, porque eu acho que sou um ser humano que nasceu para ir até 120 anos, eu vou trabalhar muito para provar a minha inocência e a farsa que foi montada. Eu tenho certeza que eu durmo todo dia com a minha consciência tranquila. Eu tenho certeza que o Dallagnol não dorme, que o Moro não dorme. E aqueles juízes do TRF-4 (Tribunal Regional Federal), que nem leram a sentença? Fizeram um acordo lá entre eles. Era melhor que um só tivesse lido e falado “olha, todo mundo aqui vota igual”.

Marisa, irmão e neto

Não é todo mundo que aguenta. A Marisa morreu por conta disso. Quem está falando é um homem de 73 anos de idade, perto de fazer 74 anos. A dona Marisa morreu por conta do que fizeram com ela e com os filhos dela. A dona Marisa perdeu motivação de vida, não saia mais de casa, não queria mais conversar nada. O AVC dela foi por isso. Agora, não pense que por causa disso eu vou ficar com meu coração cheio de ódio. Aqui tem muito lugar para amor. O ódio eu vou colocando num cantinho bem escondido.

A perda de Vavá (irmão) e Artur (neto) foram momentos foram os mais graves. Eu poderia incluir a perda de um companheiro como o ex-deputado Sigmaringa Seixas, que era meu companheiro de dezenas e dezenas de anos. A morte do meu irmão Vavá… O Vavá era como se fosse um pai da família toda. E a morte do meu neto é uma coisa que efetivamente não, não… Eu às vezes penso que seria tão mais fácil que eu tivesse morrido. Eu já vivi 73 anos, poderia morrer e deixar o meu neto viver. Mas não são apenas esses momentos que deixam a gente triste. Eu tento ser alegre e trabalhar muito a questão do ódio. Eu trabalho muito para vencer a questão do ódio. A questão da mágoa profunda.

Ex-presidente se emocionou ao se lembrar do neto. Foto: Marlene Bergamo